quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A proibição (já perimida) de La Salette foi por causa dos laicistas anticlericais?

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





O leitor Baccaro de Freitas enviou-nos a seguinte pergunta:

Algumas fontes dizem que a perseguição à mensagem de La Sallete deu-se principalmente não pela objeção dos eclesiásticos, senão pela livre interpretação das palavras do segredo feitas por iluministas, maçons e laicistas franceses que utilizavam as frases da Virgem Santíssima para desestruturar a credibilidade do Santo Padre da época, bem como dos Estados Pontifícios.
Caríssimo, essa informação procede com os fatos?

Respondemos com um atraso que nós não desejávamos.

De fato, argüiu-se que as palavras do segredo de La Salette manipuladas por anticlericais e laicistas franceses traziam dano à Igreja, ao clero francês e, obviamente à Santa Sé.

Porém, é preciso esclarecer quem dizia isso.

O Pe. Jean Stern embora, crítico dos videntes e de seu segredo, produziu uma das mais imponentes e respeitadas coleções de documentos autênticos relativos ao caso de La Salette.

Trata-se de “La Salette ‒ Documents authentiques: dossier chronologique intégral” em 3 volumes publicados por Desclée de Brouwer e Les Éditions du Cerf em datas sucessivas. Encontra-se à venda, por exemplo, no próprio santuário de La Salette (capa foto acima).

Esta coleção é preciosa pela quantidade, qualidade e rigor científico na apresentação de documentos da época.

O Pe. Stern reproduz vários artigos de jornal do tempo das aparições e outros escritos contra La Salette nos quais apalpa-se a inimizade visceral do laicismo anticlerical contra La Salette.

Porém, neles o argumento aludido não se encontra.

Há muitos e variegados ataques que repetem o realejo anti-católico transato: “estúpida invenção acolhida pela imbecilidade de alguns, explorada pelo charlatanismo desavergonhado de outros” (“Le Patriote”, 9-01-1847); “impostura fantástica”, “anedotas fictícias” (“Le National”, 20-02-1847), “prodígios calculados para a glória das sacristias”, “semelhante milagre é um crime”, “conto que só seria ridículo se não fosse que lançado entre as populações ignorantes ele pode dar lugar às conseqüências as mais deploráveis” (“Constitutionnel”, 20-02-1847), etc., etc.

Na extensa literatura que eu compulsei só encontrei o argumento da pergunta em escritos de eclesiásticos galicanos. Estes, naquela época estavam bem relacionados com os governos liberais, e acalentavam o nascente modernismo. Os exemplos são abundantes.

Cabe observar que o Bem-aventurado Papa Pio IX não acreditou no argumento. Às primeiras tentativas ele respondeu com a frase famosa: “Tenho menos a temer de Proudhon que da indiferença religiosa e do respeito humano”.

Pelo geral, o B. Pio IX mostrava conhecer a fundo a realidade da Igreja na França e o estado das dioceses e respondia que no precisava de revelações para saber o que estava acontecendo. Nessas condições, o clero galicano preferia não continuar a puxar o assunto.

No pontificado de S.S. Leão XIII houve uma mudança de atitude diplomática na Santa Sé. O novo Papa empreendeu uma política de aproximação com a República nascida da Revolução Francesa ‒ o polêmico ralliement ‒ e se afastou do monarquismo legitimista. Isto é, assumiu uma política oposta à de seu antecessor.

Nesse ambiente de aproximação com os inimigos de outrora, a referida crítica encontrou espaço para se expandir.

Assim, por exemplo, em 6 de setembro de 1880 o bispo de Angoulême escrevia ao Núncio em Paris, informando que tinha interditado a difusão da Mensagem de La Salette publicada com o imprimatur de Mons. Salvatore Luigi Zola, bispo de Lecce falecido em odor de santidade. 

O bispo francês acrescentava que atitude semelhante fora assumida por bispos de seu país como os de Nîmes, Rodez, etc.

E explicava: “Se [esses escritos] fossem cair nas mãos de nossos inimigos, não daria um escândalo público? (...) Não seria bom, Monsenhor, que Sua Santidade seja informada de nossa tristeza e de nossa inquietação?” (Michel Corteville, “La ‘Grand Nouvelle des Bergers de La Salette”, vol. I, Téqui, Paris, 2008, p. 341).

O bispo de Sées em carta a Leão XIII de 7 de setembro de 1880 resumia de modo assaz imperfeito, puxado a caricato, o conteúdo da mensagem de La Salette publicado com o imprimatur de Mons. Zola e concluía:

“Seria verossímil que, por meio dessas maldições e outras atitudes semelhantes, a Bem-aventurada Virgem Maria ataque o conjunto de nossas castíssimas virgens e as integríssimas ordens religiosas regulares que consumem sua vida pela glória de Cristo e a salvação do próximo?

“Quem acreditará que a piedosíssima Mãe de Deus, Padroeira da Igreja, diante de todos os homens possa ter apontado como suspeita a virtude dos sacerdotes, pior ainda, que Ela tenha desmoralizado a dignidade divina e a autoridade dos bispos para ser calcada aos pés dos ímpios?”

A carta concluía garantindo ao Papa que “sem dúvida em toda a França, os sacerdotes, os seminários e as famílias religiosas dos dois sexos florescem na integridade; não se encontra ordem alguma, casa alguma, a respeito das quais a Santíssima Virgem poderia proferir tão atrozes palavras” (id. ibid. p. 342).

A Santa Sé conhecia muito bem o estado ‒ aliás, crítico ‒ da Igreja na França e as polêmicas suscitadas pela corrente modernista em crescimento. Na cúria vaticana do tempo de Leão XIII houve muita disparidade de opiniões sobre La Salette e o Pontífice assumiu uma posição conciliatória.

O pontificado de São Pio X significou o fim da política de aproximação com a República anti-católica francesa e o renascer feroz do anticlericalismo. O argumento em foco perdeu força de convicção.

Por fim, S.S. Bento XV proibiu a difusão da Mensagem nos termos que mencionamos num outro post. AQUI.

O que estava na mente do Papa na hora de aprovar essa interdição? Poucos documentos são tão esclarecedores quanto um relato escrito pelo embaixador Jacques Maritain, então representante diplomático da França ante a Santa Sé, descrevendo uma audiência com S.S. Bento XV.

O embaixador fora solicitar o levantamento da proibição. A embaixatriz Raisa Maritain esteve presente tendo tomado parte na animada audiência que, entre outras coisas, descreveu assim:

S.S.Bento XV
S.S.Bento XV
“’La Salette!’, disse ele com um olhar vivo e interessado.Ele próprio explicou longamente seus sentimentos sobre a questão:

“‘A aparição está fora de dúvida; mas as palavras da Santa Virgem a Mélanie, em particular quando na mensagem secreta elas exprimem tanta severidade em relação ao clero, são bem certas? Eis o ponto da discussão! 

Que ela se tenha queixado do clero falando em termos gerais é bem possível, mas os termos tal vez foram exagerados pela fantasia (a imaginação) de Mélanie, quaisquer que sejam a sinceridade e as boas disposições dela.

“Brevemente, se é uma mensagem secreta, quoad substantiam concedo, quoad singula verbe nego (concedo no que diz à essência, nego no que se refere a cada palavra). O Santo Ofício quer evitar o escândalo, pacificar os espíritos, evitar que o povo cristão se afaste dos sacerdotes, que já tantos inimigos quereriam acabrunhar.’ [...]

“Depois, com grande doçura :

“– ‘Mas o Sr., o Sr. acredita que a Santa Virgem falou assim, ao pé da letra?’ [...]

“– ‘Sim, Santíssimo Padre, eu acredito que Mélanie era uma santa e que o que ela referiu é verdadeiro ao pé da letra. Eu conheço muitos detalhes sobre sua vida. Ela era estigmatizada. Ela sofreu muito por fidelidade à sua missão...’

“– ‘Sim, eu sei, disse o Papa que não parecia muito ofendido com minha resposta. Não se pode falar dela tudo o que se reprocha do outro vidente.’

“– ‘Mas ele foi muito caluniado também. Ele não teve as graças extraordinárias com que Mélanie foi favorecida. Mas era um bom cristão.’

“Raisa :

“– ‘Um coração simples.’

“– ‘Mas a Sra. também acredita? A Sra. também tem devoção a Nossa Senhora de La Salette?’

“– ‘Sim, Santíssimo Padre’ (ela disse isso compenetrada, malgrado o temor de avançar demais intervindo na conversa).

“– ‘Sim, eu sei, há muitas pessoas na França que tem grande devoção a Nossa Senhora de La Salette. Maior que outros têm a Nossa Senhora de Lourdes, não é?’

“Eu disse:

“– ‘É que a Santa Virgem chorou em La Salette, é por causa de suas lágrimas.’

“– ‘As lágrimas’, acrescentou Raisa, ‘expressam bem o estado atual do mundo.’

“O Papa ficou silencioso. Parecia tocado, seu rosto estava grave. Depois de um momento me disse:

“– ‘Pois bem, eis o que deveis fazer. Ide ver Nosso Irmão o Cardeal Billot (...) abri para ele vosso coração. (...) Se o bom Deus quiser se servir de vós na ocorrência, Ele inspirará a resposta que convém’.” (Laurentin-Corteville, “Découverte du secret de La Salette”, Fayard, Paris, 2002, p 140-142).

Não conhecemos o desdobramento do caso. O certo é que o embaixador francês não obteve o que desejava. Só a redescoberta dos documentos originais em 1999 dissolveu definitivamente as dificuldades apresentadas por S.S. Bento XV.